Lilian Picchi, jundiaiense, coleciona 20 anos de carreira na Polícia Civil do Estado de São Paulo, desses, quatro como investigadora-chefe da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), de Jundiaí.
Mulher e mãe, ela conta ao Tribuna de Jundiaí como é trabalhar dia após dia, com casos de violência contra mulher e crianças na cidade que nasceu e cresceu.
Confira a entrevista:
Tribuna de Jundiaí: Como e quando surgiu o desejo de trabalhar, especificamente, na Delegacia de Defesa da Mulher?
Lilian Picchi: Na verdade fui transferida para a DDM inicialmente um pouco a contra gosto, pois eu achava que não me adaptaria ao tipo de trabalho, afinal estava acostumada a a cuidar de crimes contra a vida, patrimônio e até entorpecentes. Mas quando iniciei os trabalhos na DDM me apaixonei, vi que ali eu poderia, além de fazer o trabalho policial, também desempenhar um trabalho social.
TJ: Quais as motivações e maiores desafios de trabalhar na DDM?
A maior motivação e desafio em se trabalhar numa DDM pra mim é ajudar o ser humano. Não podemos esquecer que a maioria dos casos acontece entre familiares, pessoas conhecidas ou com envolvimento amoroso, então existe sentimento entre o criminoso ou abusador e a vítima. Quando se existe sentimento fica muito mais difícil para vítima conseguir denunciar o abusador, pois em muitos casos mesmo sofrendo o abuso as mulheres ou crianças amam aquela pessoa, então é uma vítima totalmente diferente daquelas que eu estava acostumada a lidar nas outras delegacias em que trabalhei, afinal as vítimas não tinham qualquer ligação com o criminoso. Na DDM precisamos acolher aquela vítima com carinho, passar confiança, aconselhar, tentar ajudá-la a buscar coragem e força para enfrentar e se livrar do seu problema e conseguir seguir sua vida com dignidade.
É um trabalho que vai além da profissão polícia, preciso conseguir me colocar verdadeiramente no lugar do meu próximo. Uma vítima de DDM chega na delegacia insegura, arrasada, com medo, afinal quem deveria amar e cuidar é quem cometeu o crime, principalmente em casos envolvendo crianças, esses são os piores, pois os abusadores usam do amor, da amizade, da confiança que a criança tem para cometer o crime e usa desses mesmos artifícios para manipular aquelas pequenas almas para não denunciá-los, fazendo com que às vezes dure anos e anos o abuso.
TJ: Nestes anos todos, trabalhando em casos de violência contra a mulher e contra crianças, é possível não se envolver com os casos sendo mulher e mãe, fatores que causam identificação com as vítimas?
LP: Fica praticamente impossível não conseguir se envolver com alguns casos, ainda mais de eu ser mulher e principalmente mãe, mesmo depois de vinte anos de carreira. Por outro lado, pensando bem, talvez seja isso que faça eu sempre tentar fazer o meu melhor no trabalho, pois me coloco no lugar daquela vítima, imagino se fosse eu ou alguém que eu amo passando por aquela situação e acho que é isso que faz eu ter tamanho empenho, amor e dedicação para conseguir ajudar aquela pessoa. Muitas vezes fazendo eu esquecer de tudo, dedicando todo o meu tempo e energia apenas para conseguir solucionar algum caso. Amo o que faço, mas confesso que às vezes chego no meu limite emocional, mental e físico. Acho que uma das maiores dificuldades que eu enfrento é conseguir não trazer o trabalho e os problemas das pessoas que lidamos diariamente para dentro da minha casa e família.
TJ: Algum caso específico que tenha a marcado durante este tempo de carreira?
LP: Tiveram inúmeros casos marcantes, mas os piores são sempre os que envolvem crianças.
Já tive que prender pessoas conhecidas, que me doeu a alma, pois nunca imaginei que alguém próximo poderia cometer um crime daquele, mas o ser humano nos surpreende sempre – tanto pro bem, quanto pro mal. O dever em cumprir a lei tinha que estar acima de qualquer amizade.
Teve um caso há pouco tempo que prendemos um pai que estuprava a própria filha, infelizmente esse não foi o único, mas o que mais doeu foi quando encontrei a vítima no Fórum, onde teria a audiência sobre o caso e quando perguntei a ela como ela estava, ela me abraçou apertado, me agradeceu por tudo que eu tinha feito a ela, mas falou chorando que não poderia estar bem, porque apesar de saber que o pai não podia fazer o que fazia com ela, ele era pai dela e tirando isso ele sempre foi um bom pai e ela ainda o amava, mas tinha que fazer o que era certo.
Isso acabou comigo, pois como já disse, essas crianças são abusadas por aqueles que eram para cuidar, proteger, amar, educar, instruir, pessoas que elas deveriam ter segurança e esses monstros abusam desta confiança para cometer esses atos horrendos.
TJ: Como você enxerga a questão da violência contra a mulher hoje? As mulheres estão mais conscientes sobre os crimes de violência, sobre entender-se como vítima?
LP: Infelizmente o número de violência contra a mulher só cresce, mas com toda certeza as mulheres hoje em dia estão mais conscientes e seguras, as denúncias aumentaram bastante.
O que acredito que contribui muito para esse encorajamento nas mulher é a grande evolução que a lei contra a Violência Doméstica teve nesses últimos anos, lógico que muito ainda pode ser feito, mas se analisarmos há uns anos atrás como era e hoje em dia como está, vamos ver o crescimento positivo para o apoio às vítimas.
Especificamente em nossa cidade de Jundiaí podemos nos considerar referência no apoio a mulher, que além da delegacia, a Prefeitura da cidade oferece vários órgãos de apoio, incluindo um abrigo em local seguro onde vítimas que estão em eminente perigo de vida podem ficar, inclusive com seus filhos, até que as providências legais sejam adotadas e a família esteja em segurança.
TJ: Você nasceu e foi criada em Jundiaí, como é representar a força da mulher em uma divisão que cuida das mulheres na sua cidade natal?
LP: Para mim é uma honra, sou muito abençoada por Deus ter me dado esta oportunidade em poder contribuir para a proteção das mulheres e crianças da nossa Jundiaí e tento dar o meu melhor. Amo minha cidade e o que eu faço.
TJ: Como você enxerga a Lilian de quando começou a atuar na DDM e hoje, depois de anos na divisão? Quais foram as principais mudanças?
LP: A Delegacia da Mulher fez eu dar mais valor à vida, respeitar mais o ser humano, crescer como pessoa e dar menos valor para as coisas materiais e com toda certeza aprendi a valorizar a maravilhosa família e amigos que Deus me deu.
Sei que ajudo muitas pessoas, mas quem mais foi ajudada com a minha ida a DDM fui eu mesma.