
Na manhã em que li as manchetes sobre a megaoperação no Rio de Janeiro, vi as fotos, ouvi os comentários e, principalmente, as declarações de autoridades parabenizando o governador do Estado. Senti um incômodo profundo — um misto de tristeza, perplexidade e indignação. Não apenas pelo número de mortos, pelas famílias em luto, pelas mães devastadas, mas por algo ainda mais perturbador: a capacidade de comemorar esse resultado. Comemorar a morte.
Sei que, ao dizer isso, muitos vão me rotular — de “defensor de bandido”, de “ingênuo”, de “inocente útil”. Mas mesmo correndo esse risco, é impossível silenciar diante de algo tão essencial: a eficácia do Estado não pode ser medida em corpos estendidos no chão.
A pena de morte foi abolida no Brasil há muito tempo. E mesmo quando existia, era precedida de um julgamento, de um processo, de um mínimo de justiça formal. O que vimos no Rio foi diferente: uma ação que se parece mais a uma emboscada, uma exibição de força, uma operação de marketing manchada de sangue e lágrimas.
E aí vem a pergunta: isso resolve o problema da segurança pública?
A resposta, infelizmente, é óbvia — não. Esse filme nós já vimos antes.
Combater o crime organizado é algo muito mais sério do que eliminar seus operadores de rua. Esses jovens, recrutados aos montes, são o “chão de fábrica” do tráfico — os mais substituíveis, os mais descartáveis. Enquanto o verdadeiro nervo do crime — a lavagem de dinheiro, o financiamento, o poder econômico — continua intacto, protegido por escritórios de advocacia, contabilidade e empresas respeitáveis nos bairros mais ricos.
O crime organizado no Brasil não nasce nas favelas. Ele se alimenta delas, mas mora nas coberturas. E enquanto continuarmos atacando o sintoma e não a causa, o ciclo vai se repetir.
A cada “megaoperação”, mais jovens mortos, mais mães que choram seus filhos, mais manchetes vazias, mais discursos de vitória — e nenhuma mudança estrutural. E, junto com esses jovens, também morrem policiais, pais de família, trabalhadores que acreditam estar servindo à sociedade, mas que acabam sendo sacrificados em uma guerra que o próprio Estado já perdeu pela forma como a conduz. A morte deles também é resultado dessa política cega e repetitiva, que transforma a polícia em linha de frente de uma batalha impossível, enquanto os verdadeiros chefes do crime continuam inalcançáveis.
Se quisermos de fato romper com essa lógica, precisamos pensar fora da caixinha. Não basta levar escola, posto de saúde e iluminação às favelas; é preciso abrir caminhos concretos de trabalho e renda, para que essas comunidades tenham algo a escolher além da sobrevivência.
O Congresso Nacional já discute seriamente a legalização dos cassinos e o uso recreativo da cannabis — temas que, mais cedo ou mais tarde, serão aprovados. A questão é: quem vai se beneficiar desses novos mercados?
Se nada mudar, serão novamente os mesmos de sempre — grandes grupos econômicos, bancos e multinacionais —, enquanto as comunidades pobres e criminalizadas continuarão excluídas. É o cúmulo da injustiça: quando o mercado é ilegal, são essas comunidades que pagam o preço com sangue e prisões; quando ele se torna legal e lucrativo, ficam de fora.
Por que não transformar essa agenda em política pública de inclusão produtiva?
O Estado poderia delimitar territórios de alta vulnerabilidade social e autorizar, sob controle e regulação, a exploração dessas atividades nesses locais, canalizando os impostos e lucros gerados para o esporte, a cultura e programas de prevenção.
Não se trata de defender o vício, mas de reorganizar mercados que já existem de forma clandestina, devolvendo à sociedade o que hoje financia o crime organizado.
Usar exemplos de atletas ou artistas que “venceram” na favela é confortável, mas estatisticamente irrelevante. Essas histórias servem apenas para legitimar políticas desastrosas que mantêm milhões de jovens aprisionados num ciclo de violência, exclusão e ausência de perspectiva.
No fundo, o que testemunhamos no Rio não é uma vitória da segurança pública. É mais um episódio da polarização política transformada em espetáculo, em que o sangue e as lágrimas se tornam ferramentas de propaganda.
E é por isso que me recuso a aplaudir. Porque como lembrou Nietzsche: “Quem combate monstros deve cuidar para não se tornar um deles.”
Sami Mansour é engenheiro civil com Pre-MBA em Administração de Empresas. Foi Secretário de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia e Assessor Especial de Cooperação Internacional da Prefeitura de Jundiaí, além de Secretário de Indústria, Comércio e Desenvolvimento Econômico de Itupeva. Com experiência executiva no setor privado no Brasil e no exterior, participa ativamente de debates sobre geopolítica, economia global e políticas públicas.
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