
As notícias sobre feminicídio, violência contra as mulheres e abuso ou assédio sexual são constantes nos noticiários brasileiros. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil ocupa o quinto lugar no ranking mundial de feminicídio. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que o número de assassinatos chega a 4,8 para cada 100 mil mulheres.
A moradora de Louveira, Elenice Dias da Silva, de 51 anos, poderia ter entrado nas estatísticas, mas se tornou uma sobrevivente após 40 anos de abusos, que começaram com o seu pai e continuaram com o seu ex-marido. Todo o seu sofrimento, sua luta e coragem para conseguir sair dessa situação estão em seu livro, “Cale-se”, lançado neste ano com o intuito de ajudar outras mulheres que passam pela mesma situação.
“Esse livro surgiu depois de muito sofrimento. Como eu não tinha a minha própria identidade antes, eu precisava expor e colocar para fora tudo que fui proibida de contar. Além disso, todos os dias vejo histórias de mulheres mortas, notícias sobre feminicídio, sobre pedofilia. Isso dói dentro de mim”, conta Elenice.
Tudo começou, segundo a autora, quando ela ainda tinha cinco anos de idade. Natural de Claros dos Poções, interior de Minas Gerais, começou a trabalhar como doméstica com essa idade. A partir dos sete vieram os primeiros abusos por parte do seu pai. “Ele me abusava dentro da minha própria casa, se é que eu poderia chamar aquilo de casa”, relembra.
Eram cinco filhas e cinco filhos. Elenice diz que as filhas mulheres sempre iam embora logo que cresciam um pouco mais, mas ela nunca entendia. Seu pai então faleceu e, pouco tempo depois, sua mãe teve um derrame. Mesmo com a pouca idade, era ela quem cuidava da mãe, em uma situação de vida precária por conta da pobreza.
Foi então que uma professora da cidade, vendo a situação precária em que Elenice e sua mãe viviam, decidiu tentar entrar em contato com alguns dos seus irmãos mais velhos. E foi então que, com 10 anos, delas vieram para o interior de São Paulo, onde morava um dos irmãos. Finalmente em um novo lugar, com uma nova vida, Elenice não esperava que mais abusos estariam por vir: aos 12 anos, sua cunhada decidiu negociá-la e a vendeu para um homem, hoje seu ex-marido.
“Ele me comprou com cheques, fui comercializada. E os abusos foram desde o começo. A noite de núpcias foram três noites e três dias de pura violência. No começo ele me trancava e levava a chave quando ia sair. No início eu ainda não menstruava, era uma criança, e apanhava porque não dava um filho para ele”, relembra.
Os filhos e a libertação
Os abusos psicológicos e físicos permaneceram, por 30 anos. A sua força, conta ela, eram seus filhos: foram três, dois meninos e uma menina. “Eu nasci para ser mãe”, relata. No entanto, quando seu filho mais velho completou 19 anos, veio o baque: ele foi diagnosticado com leucemia e faleceu ainda na primeira quimioterapia.
“Eu fiquei seis meses lendo alguns livros para entender o que era a morte, fiquei praticamente dentro de um casulo. Perder e enterrar o Rodrigo [filho mais velho], foi como enterrar grande parte da minha vida. Depois desses meses eu saí do casulo. Eu não morri junto com ele, vi que meus outros dois filhos necessitavam de mim. Eu comecei a me tornar então uma pedra bruta, no sentido de que ‘o que não te mata, te fortalece’. Eu comecei a ver que tinha força”, conta.
Foi então, motivada por sua filha mais nova, na época com 14 anos, que Elenice decidiu ir atrás de uma advogada. Seu principal medo era perder a guarda da sua filha, mas a advogada disse que ela continuaria com a mãe. Aí, a força para buscar o divórcio foi ainda maior.
Para se virar com a nova vida, por muito tempo ela guardou uma quantia escondida, que ganhava do seu serviço como doméstica. Até que um dia seu ex-marido descobriu sua conta e roubou todo o dinheiro. Ouviu do ex marido, ainda, quem quer que seja que saísse daquela casa, só sairia dentro de um caixão. Foi então que ela decidiu abrir um boletim de ocorrência.
“Já procurei um lugar para ficar por um tempo, contratei o caminhão de mudança e a polícia foi até minha antiga casa. Enquanto eu pegava algumas trouxas, eu tinha um fone no ouvido para não ouvir a voz dele. Eu tive uma força que não era minha. Eu tremia o tempo todo enquanto juntava minha coisas. Mas eu consegui sair de lá”, relembra.
Após isso, as ameaças foram constantes e ela quase foi mais uma vítima de feminicídio. Elenice entrou com a Lei Maria da Penha e, hoje, seu ex-marido não pode chegar perto dela, por conta de uma medida judicial. E, após tantos anos de sofrimento, hoje ela finalmente se considera livre e, além do livro lançado, também realiza palestras para ajudar outras mulheres que passam pelo mesmo.
Para essas mulheres, a mensagem é uma só: encarar o medo. “A mensagem que eu passo é que o medo é só um obstáculo, você pula por cima dele. O medo é o meu pior inimigo se eu deixar ele tomar conta. Enfrenta, grite, denuncie! Se levantou a mão pra você um dia, depois ele levanta uma faca, um revólver. Não continue ao lado de uma pessoa que verbalmente te agride todos os dias, muito menos aquele que te agride fisicamente”, finaliza.
A história completa pode ser lida em seu livro, que está sendo vendido virtualmente no site da Livraria Plena Cultura, ao preço de R$ 39,90, neste link.