
É muito difícil fazer alguma análise positiva neste momento que vivemos com o cuidado certeiro que ele merece, porque são muitas vidas em risco, sobretudo de profissionais de saúde que dia a dia lidam com o medo e força nos hospitais, são muitos que estão perdendo – sejam em seus negócios, comércio, sustentos, e assim, vendo esvair aquele chão em que pareciam pisar seguros.
Mas, a meu ver, é mais complicado ainda passarmos por tudo isso sem a reflexão sobre o que realmente importa, sobre o que realmente funciona, sobre o que de fato sentimos falta quando vivemos a condição de ‘isolados’ e justamente sobre essa ‘segurança’ ilusória que achávamos que tínhamos quando passávamos pela própria vida com tanta pressa.
Tenho feito essa reflexão e sob o conflito constante de reconhecer meus privilégios versus às dificuldades de tantos outros. Mas assumindo justamente esse paradoxo do momento, penso na mudança como – além de real e necessária para protegermos nós e os demais neste momento – algo estimulante, no sentido de deixarmos velhas práticas, velhos hábitos e velhos olhares no tempo que lhes cabe: o passado.
No sentido de percebermos que precisamos de menos, quando se trata do que não agrega, e precisamos de mais no que se refere ao que de fato alimenta a vida – os cuidados com a matéria e sensações.
Precisamos de menos tempo perdido, menos compromissos engessados, menos certezas sobre as condições que são incertas e sempre foram, que são mutáveis e adaptáveis e, por isso, justificam exatamente nossos dinâmicos movimentos na vida. Precisamos gostar mais, zelar e ouvir.
Sempre tivemos alguma ameaça a enfrentar, seja de cunho pessoal ou social. O que me parece mais arrebatador agora é que essa ameaça atual não nos permite a negação por muito tempo, porque ela mexe em estruturas, em formas de organização que contraditoriamente nos afastam e nos conectam pelo mundo. São muitos barcos diferentes, com pesos diferentes, mas em um mesmo mar de imensidão de abalos. Se não nos alinharmos, todos estarão à deriva.
O ‘novo normal’, como dizem, ainda assusta, mas talvez precisemos pensar sobre quais razões reforçam esse susto e que ainda nos forçam a não legitimar formas de viver mais qualitativas e ter essas formas como frente a todo o fardo de encararmos uma pandemia.
Embora assuste, o ‘novo normal’ nos renova. Porque talvez só esse novo permita que a superação de dias de medo e angústia dos profissionais de saúde aconteça quando ficam mais tempo com os filhos na volta pra casa; que os fins de semana não sejam repletos de protocolos a cumprir, mas de encontros que se queira ter; que os livros sejam retomados; os afetos de incentivo sejam longínquos; que não haja ambientes para toxicidade; que nos preenchamos de conhecimento e não de falar de terceiros; que nos engajemos contra tantas barbáries ouvidas que endossam preconceitos inaceitáveis. Ou seja, esse novo parece nos permitir novas formas de união e mais saudáveis, mais atentas ao outro, ao que cada um pode fazer por si e, assim, somar ao mundo doente que vivemos.
Não são todos que possuem a oportunidade de revisitar a vida dessa maneira, nem os modos em que se vive, mas que possam fazer bom uso dela aqueles que a tenham.
Esse novo amedronta, claro, e como toda mudança, porque vem acompanhado do peso de mortes, do risco a que estamos submetidos (embora alguns não acreditem), da nossa consciência de que somos finitos, de que não podemos tudo. Porém, esse medo não nos garante que o que vivíamos antes, em alguns aspectos, era melhor. Podemos pensar e admitir o que de fato parecia melhor e retomar somente aquele melhor – das relações, do convívio, do afeto. Mas sobre o que já não se sustenta: teremos que inovar, inclusive em estruturas pilares como a economia, meios de trabalho, de fazer política, de construir elos.
Essa fase não é fácil, muito menos confortável, mas a coragem não está em não termos medo e sim em seguirmos enfrentando todos os medos que vierem para erguer cenários agradáveis ao momento extremamente difícil. Não voltaremos ao normal. Que possamos nos unir para as adaptações possíveis. Que do passado, a gente fique com a saudade das boas memórias, mas que isso não nos paralise como qualquer boa lembrança da vida. Temos que seguir atentos a todas as novas necessidades que irão surgir mas também aos descansos que elas podem trazer, ao silêncio sábio e às vozes unidas (nas janelas ou redes sociais) que um novo tempo precise pra se construir.
Acredito que possamos olhar para esse futuro e para esse ‘novo normal’ como alguém de fato mais responsável com seus elos, com as condições que já não cabem.
Lidar com o diferente, respeitar os limites do mundo e do outro, só podem ser ações do nosso novo mote. Do contrário, ficaremos presos a um tempo que não existirá mais e que pertencerá aos que já estavam mortos, por dentro.
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