Aumento exponencial dos pacientes, falta de equipamentos de proteção e demora por exames. Uma realidade que aumenta ainda mais o estresse e medo dos médicos que enfrentam dia a dia na linha de frente do combate ao novo coronavírus.
A BBC News Brasil entrevistou profissionais que atuam em três cidades brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília.
Uma das médicas ouvidas afirmou que ela e seus colegas trabalham “apavorados”.
Apesar dos número de casos ser diferentes em cada uma dessas áreas, os médicos enfrentam os mesmos problemas que, além de dificultar o trabalho e manejo dos pacientes infectados, também coloca sua própria vida e saúde em risco.
Vale dizer que os nomes dos entrevistados foram alterados, por medo de retaliação.
Falta de equipamentos
São Paulo
Ricardo trabalha em um dos principais hospitais públicos de São Paulo.
Segundo ele, os materiais enviados pelo poder público não atende à demanda do pronto-socorro e unidade de terapia intensiva (UTI). Os equipamentos de proteção individual, EPIs, foram comprados pelos próprios médicos do hospital.
“Há diretores do hospital que, na falta dos equipamentos, tentam justificar para a equipe que eles não são necessários. Dizem que as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para o uso de EPI são exageradas”, diz ele.
Segundo Ricardo, nesta semana, uma médica entubou emergencialmente um paciente na UTI, um dos procedimentos que mais deixam os profissionais expostos ao vírus, sem máscaras disponíveis.
“Ela fez o procedimento mesmo assim. E tem mais de 60 anos. Decidiu encarar [o risco]. No dia seguinte, aconteceu a mesma cena, mas outro profissional falou que não iria fazer, porque não ‘queria ser mártir'”, conta o médico. “Você pode ver funcionários terceirizados lavando a entrada com equipamentos melhores do que os dos médicos que estão lá dentro”, completa.
Brasília
Enquanto o número de casos ainda não é tão expressivo quanto São Paulo, o que falta em Brasília não são os EPIs, mas o treinamento de como utilizá-los.
“As pessoas não sabem retirar e colocar os equipamentos da maneira adequada, para evitar contaminação. Estamos dando cursos”, explica Lúcio, diretor de um grande hospital público.
Rio de Janeiro
Já o Rio, segue São Paulo na escassez dos equipamentos.
Luciana, responsável por pacientes com Covid-19 internados em um hospital de uma das maiores redes privadas do país, diz que a unidade determinou que os médicos usem apenas a máscara cirúrgica, capaz de bloquear apenas gotículas maiores, normalmente saliva. Ela diz que há indícios que médicos que utilizaram apenas a máscara cirúrgica na Itália e China foram infectados.
Há ainda outros dois tipos de máscara, a N95, que bloqueia partículas mais finas e cobre nariz e boca, e a PFF3, que confere uma proteção ainda maior.
“Não sabemos por que o novo coronavírus tem uma transmissibilidade tão elevada. Os vírus normalmente são transmitidos por gotícula, mas as informações que temos ainda não garantem que este vírus não pode ser transmitido de outra forma, por partículas suspensas no ar”, contou a médica à BBC.
Ela comprou, por conta, uma máscara N95, mas foi proibida de usá-la no hospital, porque, nas palavras da diretoria do hospital, deixaria outros profissionais que não tinham como fazer o mesmo preocupados.
“Disseram que iria gerar um motim (entre funcionários)”, diz Luciana.
Depois de reunir os colegas para discutir a situação e, coletivamente, cogitarem a recusa de hospitais com Covid-19, o hospital atendeu ao pedido e liberou as máscaras.
“Não consigo acreditar que um hospital de grande porte não seja capaz de bolar uma estratégia de atendimento que proteja os profissionais de saúde, que estão na linha de frente e precisam ter tranquilidade para trabalhar”, diz ela.
“Estão mais preocupados com a questão financeira, porque paciente com Covid-19 fica muito tempo internado, e o hospital precisa de rotatividade para ter lucro, senão pode ir à falência”, afirma.
Aumento de pacientes
São Paulo
“Estamos todos trabalhando sob pressão”, diz o médico Ricardo sobre o aumento exponencial no número de pacientes. “Além disso, os funcionários sabem da gravidade: ninguém quer ficar doente”, explica.
Segundo ele, ao menos quatro profissionais foram afastados nos últimos dias com sintomas de Covid-19.
Já a infectologista Cristina, que também trabalha em um hospital público que atende casos de coronavírus em São Paulo, conta houve aumento de 50% no número de pacientes de uma semana, para outra.
“Nós, trabalhadores da saúde, também temos que lidar com a fobia, com o medo de infecção. Em algum momento cai a ficha e você pensa: ‘preciso relaxar para conseguir atender'”, diz.
Ela também detalha que, ao receberem o diagnóstico positivo para a Covid-19, os pacientes ficam muito ansiosos.
“As pessoas têm a ideia de que vão morrer no dia seguinte. E não é assim. A gente explica e fala: ‘olha, aqui você vai ser bem tratado, vai dar tudo certo'”, conta.
Rio de Janeiro
Luciana também conta que, nos últimos dois dias, o número de pacientes quadruplicou e já são mais de 20 internados por este motivo, o que levou o hospital onde trabalha a abrir uma nova ala para tratar esses pacientes, com “a possibilidade de abrir uma terceira”.
“A orientação é que estejamos preparados para tudo, inclusive ter o hospital inteiro ocupado por pacientes com Covid-19”, conta a médica.
Ela diz que cerca de um terço dos pacientes têm menos de 60 anos. “Talvez por isso não tenham surgido ainda casos muito graves.”
“Mas a gente se assusta com as imagens que vemos na tomografia, o pulmão todo infiltrado e com manchas brancas, com vírus por todos os lados. É algo que a gente não vê em pessoas mais jovens. Nunca vi tanto paciente chegar com uma coisa dessa”, afirma a médica.
Segundo o médico Marcio, que trabalha em um hospital público do Rio de Janeiro, o número de pacientes vem crescendo dia a dia, mas ele acredita que os médicos brasileiros têm uma certa vantagem nesse momento, “porque já sabem melhor como tratar os doentes em relação aos colegas chineses”, que enfrentaram os primeiros casos de Covid-19. “Também já sabemos nos prevenir melhor”, diz.
Luciana, do Rio de Janeiro, vai mais longe e diz que ela e os colegas hoje “trabalham com medo”, embora estejam conscientes da importância dos profissionais durante a pandemia de coronavírus.
“Fizemos um juramento, escolhemos a nossa profissão, mas hoje a gente trabalha com medo, porque é uma coisa muito nova para todo mundo. Estamos todos apavorados. A gente fica pensando no colega que é médico, tem 60 anos, é asmático e trabalha em UTI e tem tudo para pegar a doença e que vai ter que entubar os pacientes com Covid”, diz.
Brasília
Lúcio também cita que a falta de acordo entre as autoridades tem atrapalhado o atendimento dos médicos, deixando pacientes confusos.
“Hoje mesmo, um paciente que é pedreiro e nem tem sintomas de Covid-19 me perguntou se deveria ficar em casa, como disse o governador, ou se deveria sair e voltar ao trabalho, como pediu o presidente Jair Bolsonaro”, diz.
“Não existe uma organização uniforme das informações. O Ministério da Saúde fala uma coisa, entidades médicas e secretarias (estaduais) falam outra. Se isso tudo gera uma certa ansiedade nos médicos, imagina na população”, diz.
Exames demorados
São Paulo
O estado é um dos que mais sofre com a demora no resultado dos exames. O Instituto Adolto Lutz, que atende parte dos testes do estado, tem demorado dez dias para liberar a confirmação laboratorial da doença.
Médicos de hospitais públicos de São Paulo dizem ainda que na rede privada, os exames podem sair em poucas horas.
“Muitas vezes, quando sai o resultado, o paciente já nem tem mais sintomas”, explica Cristina”.
“Também há muita pressão por parte dos familiares, pois as visitas estão restritas. É uma situação angustiante, porque os parentes querem saber se o familiar está com Covid-19, e nós não podemos dizer que sim, porque os resultados demoram dez dias. Houve um caso de morte no hospital, e que posso dizer que era de um paciente com todos os sintomas de coronavírus, mas que até agora, dias depois, o resultado do teste ainda não saiu”, explica Ricardo.
A demora nos resultados também impacta os próprios profissionais. Alguns estão afastados com sintomas de coronavirus e sem data para retornar ao trabalho, pois não há confirmação da doença.
O governo de São Paulo afirmou que o Instituto Adolfo Lutz “está priorizando o processamento das amostras de casos graves e óbitos”.
“Cabe ressaltar que o teste não impacta no tratamento da pessoa, que é feito apenas do ponto de vista clínico, e que o acompanhamento do cenário da Covid-19 também pode ser embasado no critério clínico-epidemiológico, assim como ocorre com outras doenças infecciosas”, diz o governo.