A pandemia que rasgou nossas feridas como desiguais agora nos une na mesma condição: somos todos grupo de risco.
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A pandemia que rasgou nossas feridas como desiguais agora nos une na mesma condição: somos todos grupo de risco.

Por Raquel Loboda Biondi.

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Raquel Loboda Biondi
Raquel Loboda Biondi, jornalista e atualmente assessora legislativa na Câmara de Jundiaí (Foto: Divulgação)

Uma vez, em uma conversa de dia a dia, já não me lembro se à espera de consulta ou na fila de um banco, me atentei para uma pessoa que me disse: “na hora da doença, somos todos iguais.” Aquela frase simples, que poderia ser só mais alguma de efeito ou de conversa de elevador, e que deve ser dita por tantos outros mas só naquele dia chegou até mim, soou muito maior – e como que em respeito a essas sabedorias que ganhamos de presente na vida, eu não esqueci.

Adormecida por um tempo – talvez pelos outros aprendizados que nos atropelam ou enganos da vitalidade da juventude – agora, neste momento ainda mais crítico de um vírus que transformou tantas vidas, a mesma frase ressoa alto e me parece fresca.

Os dias que vivemos nos remetem àqueles que nos comoveram em relação a outros países no início da pandemia, porque havia sobrecarga dos hospitais longe daqui; não havia equipamentos para todos, havia incertezas no tratamento e a circulação não tinha sofrido freios como deveria. E como deveria? Fomos aprendendo, na dor, dia após dia, a lidar com uma doença ao mesmo tempo em que ela se desenvolvia. O mundo todo.

No Brasil, porém, os progressos foram feitos quase que como uma afronta à guerra interna que se impôs. Nesta guerra, um lado bem importante negou a ciência, os picos, as análises embasadas, a necessária compra de vacina e a relação exterior sadia. Com esse ‘um ano depois’ nas costas, de avanços isolados e não devidamente incentivados nacionalmente, nos vemos próximos daquele cenário inicial e, em boa parte já superado, de outros lugares do mundo.

Neste mesmo um ano, aliás, a doença sim se fortaleceu: sua contaminação é mais rápida, seus efeitos mais agressivos, o que estava quase parecendo como “novo velho” conhecido, já não corresponde ao monitoramento necessário, os quadros mudaram e os mais vulneráveis a ela também. E nós aqui com uma maioria talvez ainda  resistindo a admitir a existência de um vírus totalmente factível.

Sabíamos da pandemia, mas o movimento pendular de ‘abre e fecha’ desgastou; os discursos que deveriam ser um se desviaram em muitos desencontrados; o protocolo que deveria ser médico foi politizado e, para uma boa parte, parecia haver a ilusão de que, ainda longe, esse vírus realmente não existia ou estava controlado. Mas eu pergunto, em que corpos? A força daquilo que negamos trouxe mortes numerosas e, não surpreendentemente, próximas. As mortes hoje não somente entristecem, elas assustam, revoltam e a pandemia que evidenciou nossos abismos sociais, nossas diferenças gritantes, passa, agora, a nos mostrar outro espelho desesperador, aquele que reflete o que essencialmente somos: humanos, finitos e iguais. Todos somos grupo de risco.

Podemos ter sido formados de muitas histórias materiais distintas, por trajetórias blindadas ou cruéis, por vantagens versus opressões que nos fizeram ter tantos caminhos opostos, tantas vezes distantes em um Brasil imenso, mas como me disseram naquele dia, “na hora da doença, somos todos iguais”. Podemos ter tido outras enfermidades até aqui, comorbidades como tem se falado tanto, mas o acesso a mais uma realidade comum está nos confrontando.

O barco, a fila e a espera – que um dia podem ter sido diferentes – hoje são os mesmos e chegaram àqueles que, um dia, viram-se como superiores, que se gabavam por não cumprir regras coletivas, que por alguma razão financeira ou social pareciam inabaláveis. Morrem idosos, morrem jovens, morre quem vendia saúde, morrem os “atletas”, os ricos ou pobres.

Ainda assim, continuamos indiferentes ao que, de forma trágica, nos une. Boa parte continua a negar a doença, as limitações, as dificuldades. Boa parte nega esse próximo que de tão igual assusta e, portanto, nega que tenha alguma participação neste combate. Outra parte continua a se considerar superior: aglomera, desrespeita, sabe tudo, inclusive como medicar e frisa a diferença.

Sabe também que tipo de hospital precisamos ter e pede mais e mais leitos, como se a circulação do vírus pudesse ser atenuada em lugares para estocar doentes. Claro que precisamos de estruturas emergenciais, de medidas e norte públicos, mas desde sempre sabemos que essa pandemia precisa, acima de tudo, de unidade, de respeito às exigências, ao momento, às dores próprias e dos outros. Ninguém está ileso de contribuir ou de ser prejudicado. Mais vagas e leitos não diminuirão as mortes se o vírus continuar a ser negado e, assim, circular com a força que, diferente da nossa frágil noção coletiva, renova-se.

Talvez acostumado às desgraças de suas desigualdades, o Brasil não chore mais por si mesmo – assim tento compreender -, mas que falta de amor é essa que não se curva aos seus? A que estágio de negação chegamos que já não abrange negar só uma crise global, de impactos irrecusáveis, e sim a si mesmo? “Quero vacina antes de todos”, eu escuto, já não mais à espera de consultas ou na fila do banco – as frases do dia a dia são outras e vêm nas correntes de WhatsApp ou nos gritos da internet.

Não condeno quem queira se proteger, sobretudo aqueles expostos aos serviços essenciais, não somente médicos, mas tantas classes que, espero, vermos mais valorizadas um dia. Em meio ao caos, tentar eliminar o medo que nos paira é mais que natural. Só penso que, neste momento, depois de tantas diferenças e desigualdades a que fomos lançados nesta pandemia, um elo de desafios nos une e o “eu” da sentença se torna “nós”. Se antes de mim, outras pessoas estiverem sendo vacinadas, é sinal de que essa corrente se amplia. A vacina não protege só quem toma, ela é nossa solução coletiva.

Se esse espelho colocado à nossa frente ainda não nos servir para alguma nova comoção que acolha os nossos, receio que ele se quebre ou continue arranhado. E não adiantará depois esperar que um milagre ou um ‘outro culpado’ cole os cacos. Todos estamos nesse futuro de peças sofridas a se reencaixar, bastará uma dar suporte a outra.

Raquel Loboda Biondi, jornalista e atualmente assessora legislativa na Câmara de Jundiaí.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Tribuna de Jundiaí.

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